Mais do que um caminho de pedras no Cerrado, a Trilha dos Escravos, em Luziânia (GO), é um vestígio vivo da história da cidade e da presença negra na construção do Brasil colonial. Localizada nos arredores da antiga Santa Luzia, a trilha remonta ao século XVIII e guarda em seu traçado cicatrizes do trabalho forçado de homens e mulheres escravizados que, com ferramentas rudimentares, abriram uma via de 42 quilômetros para canalizar água das nascentes da região de Saia Velha até a área conhecida como Terras Altas, onde se concentravam casarões e minas de ouro.

Quem resgata essa história é o historiador e pedagogo José Alfio, fundador do Museu da Memória de Luziânia e presidente de uma ONG Proteger dedicada à preservação da memória cultural da cidade. Em entrevista ao Jornal Opção Entorno, Alfio explica que a trilha é um dos marcos mais antigos de Luziânia e testemunha uma das disputas mais emblemáticas do período da mineração entre dois coronéis da elite local: José Pereira Lisboa e João Pereira Guimarães.

O historiador demonstra a bateia, instrumento para extração do ouro. Foto: Graciliano Cândido/ Jornal Opção

“Essa trilha começou a ser chamada de ‘Trilha dos Escravos’ recentemente, quando um grupo de ciclistas redescobriu o local para a prática esportiva. Mas sua origem vem do tempo da mineração. Os escravos cortaram morros inteiros de pedra, a chamada tapiocanga, para construir esse caminho que levava a água até as minas”, explica o historiador.

Rivalidade entre coronéis e a “inauguração das cabaças”

De acordo com os registros históricos, os coronéis Lisboa e Guimarães disputavam poder e influência durante o ciclo do ouro. Diante da dificuldade em transportar o material das minas para os engenhos de apuração, surgiu a ideia de levar a água até as Terras Altas para facilitar a lavagem do cascalho aurífero. Foi quando os Guimarães lideraram a construção do canal com ajuda de escravos, passando por áreas que hoje abrangem a BR-040, próximo ao Gama (DF).

A Trilha do Escravos fica no bairro Jofre Parada, no centro de Luziânia, reunindo diversos simbolismos. Foto: Graciliano Cândido/ Jornal Opção

Ao final da obra, foi realizada uma espécie de cerimônia de inauguração. Cabaças — frutos típicos do Cerrado usados como boias e instrumentos de medição de topografia — foram jogadas no dique e desceram rolando pela então Rua do Rosário. Populares, em tom de provocação, entoaram uma cantiga dirigida a Lisboa: “A cabaça não traz água, mas a água traz a cabaça”.

Ofendido, o coronel saiu armado pelas ruas. O episódio terminou com sua prisão e deportação para Portugal. O incidente foi registrado em obras como O Almanarque de Santa Luzia, de Gelmires Reis, e em escritos do historiador José de Melo Alvares.

Preservar a história, promover o turismo

Para Alfio, a Trilha dos Escravos carrega uma dualidade simbólica. Ao mesmo tempo que remete à dor da escravidão, é também um monumento à resistência e à contribuição dos povos africanos na formação da cidade.

“A juventude hoje usa a trilha para esporte e lazer, mas ela precisa ser melhor aproveitada como ponto turístico e educativo. Já sugerimos, por exemplo, a criação de uma tirolesa no local e trilhas guiadas com oficinas sobre o Cerrado e a história local”, afirma o professor.

A trilha, embora esquecida pelo poder público, ainda preserva inscrições e marcas nas pedras feitas pelos próprios escravizados. A ONG Proteger presidida por Alfio atua para preservar esse legado e transformar a memória em ferramenta de formação para as novas gerações.

Museu de Luziânia

Atualmente, o museu que abriga mais de 200 itens históricos, entre fotografias, ferramentas e documentos, funciona em um imóvel da família de Alfio. No entanto, a sede está em processo de inventário e corre risco de ser perdida. Para resolver a situação, a prefeitura doou um terreno no Aeroclube para a construção da nova sede da ONG e do Museu de Luziânia.

Com projeto arquitetônico já em andamento — com apoio do IFG —, a fachada do novo museu trará um paredão sinuoso com um grande vazado em forma de cabaça. “Queremos incluir também um painel em braile contando a história da Trilha dos Escravos. É uma forma de tornar o espaço acessível e reforçar a identidade de Luziânia”, afirma Alfio.

O projeto busca financiamento por meio de editais do Iphan, Ibram, Lei Rouanet e emendas parlamentares.

Educação como ferramenta de memória

Com formação em pedagogia, pós-graduação e mestrado em artes visuais, Alfio também é membro da Academia de Artes e Letras de Luziânia. Ele defende que a educação é o melhor caminho para preservar o passado e construir uma consciência histórica.

Mais de 200 peças compõem o acervo do Museu da Memória de Luziânia. Foto: Graciliano Cândido

“A gente abre o museu para escolas agendadas, oferecendo oficinas de arte, teatro, história e leitura. É por meio da arte que os jovens se aproximam da memória. Como os ciclistas que redescobriram a trilha, queremos que as novas gerações redescubram a importância dos seus antepassados.”

Com o futuro museu e uma nova valorização da Trilha dos Escravos, Luziânia pode transformar um de seus mais antigos caminhos em um potente instrumento de educação, turismo e consciência histórica.