Com o intuito de promover a preservação de campos e savanas localizados em um dos mais extraordinários biomas brasileiros, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad) lançou o projeto Campos do Cerrado, que busca desvendar segredos da vegetação campestre e revelar sua rica biodiversidade. A conscientização ambiental é um dos objetivos do projeto, que tem como principal missão mostrar para a sociedade mais um dos tesouros ecológicos que o Brasil abriga. Entre os municípios abarcados pela iniciativa, oito são da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride): Cavalcante, Alto Paraíso de Goiás, Formosa, Cristalina, Água Fria de Goiás, Luziânia, Flores de Goiás e São João d’Aliança.

O projeto foi lançado há cerca de um mês e sua primeira oficina de capacitação contou com a presença de analistas e técnicos ambientais da Semad, consultores ambientais e gestores municipais de áreas com relevante presença de vegetação campestre. A ação conta, ainda, com um website informativo e um manual prático para auxiliar na identificação dos campos por técnicos, consultores e proprietários rurais. Esse material foi criado pela Semad em parceria com os pesquisadores Rafael Oliveira e Natashi Pilon, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Os campos e savanas presentes no bioma apresentam rica biodiversidade (Foto: Divulgação/ Semad)

Áreas ainda negligenciadas

A falta de normas técnicas, listas de espécies e outros conhecimentos necessários para guiar o trabalho de especialistas e gestores na conservação dos campos, motivaram a criação do projeto. “Sou de Brasília e convivi com esse tipo de vegetação desde muito cedo, na década de 1980. E depois que eu comecei a estudar e pesquisar, eu me dei de conta que os campos do Cerrado são muito negligenciados e pouco compreendidos”, relata o pesquisador Rafael Oliveira. “Infelizmente, muitas vezes são vistos como áreas degradadas. Mas desde a época da minha graduação que percebo que se trata de uma vegetação muito sutil e muito especial. A beleza da vegetação nos campos está nos detalhes, são plantas muito peculiares”, acrescenta.

Em setembro de 2021, ocorreu um evento on-line organizado pela Semad, para tratar sobre as fitofisionomias do Cerrado. Para participar, foram convidados diversos pesquisadores, que falaram especialmente sobre os campos. “O projeto foi ganhando escala para muito além do manual. Hoje, ele visa não apenas a diferenciação de áreas conservadas e degradadas, mas também reconectar a população sobre a grande biodiversidade e importância dos campos nativos do Cerrado em termos de produção de água, estoques de carbono, abrigo para polinizadores e vários outros valores culturais imensuráveis”, detalha a pesquisadora Natashi Pilon, que também é professora doutora na Unicamp.

Representantes da Semad, Ministério do Meio Ambiente, ICMBIO, Embrapa e Rede Araticum no lançamento do projeto

A bióloga Franciele Parreira Peixoto, analista ambiental da Semad e uma das coordenadoras do projeto, reitera e destaca que uma das ações mais importantes, no escopo da iniciativa, é a sensibilização do público leigo a respeito do tema. “A equipe entendeu que não eram apenas os técnicos que precisavam de informações sobre essa fitofisionomia, mas também a população em geral, como moradores da zona rural que lidam diretamente com esses territórios e desconhecem sua relevância”, esclarece.

O Campos do Cerrado busca, desta forma, estabelecer uma ponte entre a ciência e a prática, com a intenção de sensibilizar diversos setores da sociedade. “Inclusive crianças, que têm o potencial de mudar significativamente a visão sobre a importância dos campos nativos”, complementa Franciele.

Franciele Peixoto: a população também precisa conhecer a relevância dos campos do Cerrado (Foto: Divulgação)

Segurança hídrica

O gerente do Grupo de Pesquisa e Extensão em Controle Biológico (Gebio), Max Vinícius, ressalta que essas paisagens contempladas pelo projeto trazem grande biodiversidade. Segundo ele, as formações campestres nativas podem ser classificadas em campo úmido, veredas, campo de murundus, campo limpo, campo sujo, campo cerrado e campo rupestre. “Embora haja a predominância dessas formações, ainda são pouco conhecidas tecnicamente”, assinala. “É nas fisionomias abertas, que têm como principal característica a presença de um estrato rasteiro rico em gramíneas nativas e ervas, que encontramos a maior riqueza de plantas e animais endêmicos do Cerrado, além de exercerem papel extremamente importante para a produção de água no Brasil”.

De acordo com o gerente do Gebio, no bioma encontra-se o chamado “arco das nascentes”, onde estão as cabeceiras dos rios que abastecem oito das 12 grandes regiões hidrográficas brasileiras. “Com o projeto, é possível reapresentar o Cerrado como berço das águas e explicar o quanto a segurança hídrica e climática nacional dependem da manutenção das poucas áreas conservadas ainda remanescentes”, salienta. “Com sua rica biodiversidade, paisagens deslumbrantes e papel vital na regulação do clima e da água, os campos do Cerrado merecem a atenção e cuidado não só da região do Entorno, mas de todo o país”.

Max Vinícius: “Com o projeto, é possível reapresentar o Cerrado como berço das águas” (Foto: Divulgação)

Rafael Oliveira, por sua vez, lembra que os campos não carregam em si apenas o aspecto paisagístico, como também fornece serviços ambientais, referentes a tudo o que a natureza traz de benefício para o homem. “Conservar campos significa que a gente está conservando água, porque eles possibilitam a infiltração e o armazenamento de água no solo, que vai recarregar os lençóis freáticos. Com isso, a gente aumenta a nossa segurança hídrica”, esclarece o pesquisador da Unicamp. “Além disso, temos visto que especialmente os campos mais úmidos têm muita importância também no estoque de carbono, que é algo importante. Quando a gente pensa em mudanças climáticas, temos dados recentes de que esses campos podem estocar até três vezes mais carbono do que florestas tropicais”, afirma.

Rafael Oliveira: “Conservar campos significa que a gente está conservando água” (Foto: Divulgação)

Levando conhecimento à sociedade

Outra questão interessante envolvendo os campos e savanas do bioma, é que, por muito tempo, acreditou-se que eram florestas degradadas. “Por isso, dois pensamentos errôneos eram difundidos: de que seriam áreas antropizadas e de menor valor ecossistêmico, e de que a cobertura de floresta deveria se expandir por toda a paisagem”, recorda a coordenadora de conservação da biodiversidade da Semad, Inara Ribas.

Um grande desafio técnico é identificar se a área em análise é composta por um fragmento de vegetação nativa invadida por gramíneas exóticas ou se trata de um local onde a vegetação nativa foi retirada para implantação de pastagem. “Assim, quando se trata das fisionomias abertas do Cerrado, para sua correta identificação e conservação, é necessário desenvolver um olhar mais criterioso e entender que cobertura de árvores não é um indicador adequado”, esclarece Inara.

Inara Ribas: olhar criterioso na identificação das fisionomias abertas do Cerrado (Foto: Divulgação)

Para Natashi Pilon, é necessário que a sociedade entenda e valorize a grande riqueza natural presentes nesses campos. “Muitas vezes encontramos até 50 espécies diferentes em apenas um metro quadrado de vegetação nativa. Temos uma dependência dessas vegetações abertas em termos de serviços ecossistêmicos, principalmente relativos à produção de água e segurança hídrica em escala nacional”, salienta. Hoje, muitas pessoas não conseguem diferenciar campos conservados de pastos dominados por espécies exóticas ou áreas degradadas. Pretendemos, com o projeto Campos do Cerrado, mudar essa realidade”, frisa a pesquisadora, acrescentando que as pessoas só valorizam aquilo que conhecem. “Vemos grandes mobilizações para a conservação das florestas tropicais, mas isso não ocorre para os campos do Cerrado. Não vemos a sociedade civil mobilizada, em massa, para a proteção dessas vegetações dominadas por plantas pequenas”, alerta.

E essa falta de conhecimento se reflete na fragilidade das políticas públicas e instrumentos para a conservação dessas fitofisionomias. “É provável que o Cerrado já tenha perdido mais da metade de sua cobertura original. Certamente extinguimos espécies antes mesmo delas serem descritas e, assim, conhecidas. Além disso, muitas crises ambientais estão relacionadas à perda desses campos. Portanto, a negligência quanto a esse tipo de vegetação leva a perdas irreparáveis do ponto de vista da flora e fauna nacional e, também, prejuízos econômicos”, conclui a professora da Unicamp.

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