Mais de 48% dos lares brasileiros têm mulheres como chefes de família, isto é, como as principais responsáveis pelo sustento da casa e dos filhos. Em Goiânia, a proporção é ainda maior do que a média nacional: 53,3%; o que representa mais que o dobro do índice em 1995, quando a porcentagem de lares chefiados pela figura feminina era de apenas 25%. Os dados são do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Apesar de a maioria dos domicílios goianienses serem chefiados por mulheres, elas ganham menos que os homens, sofrem maiores violências e continuam ocupando menos espaços de poder. Pesquisadores entrevistados pelo Jornal Opção explicam que o fenômeno pode ser explicado pelo desmerecimento da importância, capacidade e autonomia feminina, em uma visão ainda atrelada a valores do passado.

Denise Cristiane Gomes é mãe solteira, tem uma filha de 12 anos, e conta como é conciliar a carreira, os trabalhos domésticos e a criação da filha. Ela mora em Hidrolândia, mas trabalha em Goiânia. “Eu trabalho de segunda à segunda. Dependo de uma tia, que é a única pessoa que tenho, e que me ajuda ficando com minha filha nos dias sem aula. Estou sempre muito cansada porque eu chego em casa às 22h da noite, e apenas depois disso vou verificar como vai minha filha. O pai mora em outro país e só liga para reclamar de algo”, conta.

Denise Cristiane Gomes, mãe solo e moradora de Hidrolândia. Foto: Arquivo

“Ao invés de auxiliar na educação, o pai a dificulta”, afirma Denise Cristine. “Quando nos separamos, ele ficava com a guarda de minha filha a cada 15 dias, mas, desde que se casou novamente, tem sido ausente. Minha filha sempre reclamou por sentir saudades do pai.” Apesar das dificuldades, Denise Cristiane Gomes é uma amostra da enorme porcentagem de mulheres que chefiam o lar e criam os filhos sozinha.

O IBGE divulgou também o número médio de horas semanais dedicadas aos cuidados de pessoas e afazeres domésticos das pessoas a partir de 14 anos. Em Goiás, homens dedicam pouco mais de 10 horas por dia (10,6), enquanto as mulheres têm quase o dobro de suas horas ocupadas (18,4). Além disso, as mulheres negras representam um percentual ainda maior, tendo quase 20 horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos.

Ana Cristina Nassif Soares é psicóloga clínica e docente aposentada da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP). Ela explica: “O machismo começou quando se concretizou a propriedade privada da terra, no começo da agricultura e pecuária, e quando os seres humanos deixam de ser nômades e se fixam em estabelecimentos fixos. Nesse momento de revolução agrícola, os homens começam controlar a fertilidade das mulheres e passaram a ter recursos suficientes para se impor sobre suas vidas sexuais e reprodutivas. O objetivo final era evitar que suas heranças e esforços fossem dedicados a criar um filho bastardo. Nesse momento, o homem começa a se sentir dono da mulher e da prole”, explica

Estudiosa das relações de gênero, ela explica que a monogamia começa por uma questão meramente econômica e com o passar do tempo vai sendo abarcada pelas religiões e pelo moralismo, dando origem ao patriarcado. “Em geral, as religiões perpetuam esses lugares, esses papéis de que cabe ao homem manter a casa financeiramente e mandar nessa casa, tendo sempre a primeira e a última palavra, nesse sentido de que ele sempre vai colocar ordem na casa. E a mulher, cabe a ela o lugar de criar os filhos, de cuidar da casa e cuidar desse marido”.

Ana Cristina Nassif Soares, psicóloga clínica e pesquisadora das relações de gênero. | Foto: Arquivo

Em 2022, o Instituto Mauro Borges (IMB) fez uma pesquisa sobre o perfil da mulher goiana. A população feminina em situação de vulnerabilidade de Goiás é predominantemente negra (75% são de cor parda ou preta) e jovem (60% têm até 34 anos). Do mesmo modo, a maioria das chefes de família é negra ou parda, com idade de 25 e 34 anos, e com pouco ou nenhum acesso ao ensino escolar. A baixa escolaridade reflete diretamente nas oportunidades de emprego.

O IBGE também traçou o rendimento habitual dos trabalhos e razão de rendimentos das pessoas a partir de 14 anos. No Brasil, a média salarial dos homens é de R$ 2.920,00, enquanto das mulheres é de R$ 2.303,00. Considerando as mulheres negras, a disparidade ainda é maior porque elas recebem cerca de R$ 1.781,00.menta sobre a importância de se reparar o que foi desmontado nos últimos anos.

Desigualdade no mercado de trabalho

De acordo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), em todos os anos da série histórica, as mulheres apresentaram taxas de desocupação mais altas, mas esse indicador tem caído, o que revela a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Em 2012, a taxa de desocupação feminina era de 6,5%, enquanto a masculina se situava em 4,0%.

A partir de 2015, observa-se um aumento gradual da desocupação em ambos os gêneros, intensificado a partir de 2020 com a pandemia da COVID-19. Em 2022, em termos relativos, a taxa de desocupação feminina caiu de maneira mais intensa que a masculina, refletindo também na redução da diferença entre os gêneros, que nesse caso foi de 3,3 pontos percentuais, a menor desde 2013. Em 2012, apenas 2,8% das mulheres ocupavam cargos de poder ou eram empregadoras; em 2022, a proporção saltou para 3,3%.

A proporção de jovens mulheres goianas entre 15 e 24 anos que não estudam, não trabalham
e não participam de treinamentos apresentou também caiu significativa entre 2016 e 2022. Em 2016, a taxa feminina em questão, em Goiás, era de 26,9%, enquanto a masculina se situava em 12,0%, uma diferença de 14,9 pontos percentuais (p.p.). Ao longo dos anos subsequentes, a proporção de jovens mulheres goianas entre 15 e 24 anos que não estudam, não trabalham e não participam de treinamentos apresentou uma trajetória descendente, chegando a 19,5% em 2022, a menor da série histórica.

Proporção de pessoas de 15 a 24 anos de idade que não estudam, não estão ocupados e não estão em
treinamento, por sexo, em Goiás, 2016 a 2019 e 2022. | Foto: IBGE

Conselho estadual da mulher

Rosi Guimarães é presidente do Conselho Estadual da Mulher (Conem) em Goiás e fala ao Jornal Opção sobre machismo estrutrual e medidas de combate às violências e disparidades nas relações de gênero. “O machismo estrutural, é a maneira pela qual as normas, valores, crenças e instituições em uma sociedade são organizadas, perpetuando a desigualdade e os privilégios masculinos em detrimento às mulheres. Ele não se limita a atitudes individuais ou comportamentos específicos, mas se refere a um sistema mais amplo que está arraigado nas estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais”.

Como exemplo ela fala sobre o mercado de trabalho, onde os homens são vistos e já considerados como competitivos e dominantes, enquanto as mulheres devem ser passivas e voltadas para o cuidado com o lar e tarefas domésticas. Em casa, as mulheres ainda enfrentam uma divisão desigual do trabalho doméstico e de cuidados.

Rosi Guimarães é presidente do Conselho Estadual da Mulher. | Foto: Arquivo

“As mulheres que trabalham fora, quando chegam em casa, cabem a elas a tarefa doméstica, sendo colocado ao parceiro, a questão de uma “ajuda”, e não como uma divisão de responsabilidades. Cabe às mães o trabalho de educar os filhos, irem às reuniões escolares, auxiliar nos deveres de casa, etc. Não estou generalizando, mas sim colocando uma questão naturalizada e tida como referência na maioria dos lares”, explica Rosi.

De acordo com ela, o desafio enfrentado por mulheres chefes de família é a discriminação de gênero, dificuldade de conciliação trabalho-família podem limitar as opções de emprego disponíveis para essas mulheres, bem como suas oportunidades de avanço na carreira, por dificuldade em encontrarem empregos flexíveis ou horários de trabalho compatíveis com suas responsabilidades familiares.

“As mulheres chefes de família frequentemente enfrentam questões de disparidades salariais e podem estar em maior risco de insegurança financeira devido à falta de apoio adequado (pensa quando as crianças adoecem; a ausência de uma rede social bem como de políticas públicas adequadas – creches públicas ou dentro das empresas) e à discriminação no local de trabalho. Isso pode tornar mais difícil para elas sustentar suas famílias e proporcionar um padrão de vida adequado para seus filhos”, exemplifica.

Para as maes solo, ou seja, mulheres que são as úncias provedoras e cuidadoras de seus filhos, essa carga pode ser ainda mais intensa e desafiadora. “Vemos constantemente e precisamos falar sobre isso, o estresse e a exaustão. Quando atribuímos a esta mãe, o recorte de mães atípicas, fica mais profunda à discussão; falta de tempo para si mesmas; pressão financeira e isolamento social também são problemas do dia-a-dia”, pontua Rosi.

Em Goiás, o Conselho Estadual da Mulher tem acompanhado os Programas sociais que buscam alcançar as mulheres consideradas em vulnerabilidade social, que se recorrem aos programas assistenciais por meio do cadastro único envolvendo indicadores sociais. Rosi destaca o Goiás Social, onde por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social apresenta o Programa Mães de Goiás, que concede uma transferência de renda no valor de R$ 250,00, às mulheres que possuem filhos em idade até 07 anos.

Além disso, cita o Programa Crédito Social desenvolvido pela Secretaria da Retomada, que qualifica profissionalmente e estimula que estas mães em perfil social vulnerável possam empreender e obterem uma renda dentro da sua própria casa ou de forma a contemplar e deixar compatíveis o horário, esta geração de renda e cuidados domestícos.

Mulheres negras

Sonia Cleide mora em Goiânia, é mãe do Daniel, fundadora do Grupo de Mulheres Negras Malunga (1998), uma das fundadoras da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e foi Superintendente de Igualdade Racial de Goiás de 2009 a 2011. Hoje é candidata a vereadora pela cidade de Goiânia.

“Sou uma mulher preta, lésbica, sou casada e estou cotidianamente na luta antirracista e antimachista. Na política, enfrentei uma barra muito grande com essa questão de não ter uma família tradicional. Fiz um vídeo mostrando minha família, que é meu filho e minha companheira, e muitas pessoas criticaram. Elas acham que a mulher precisa sempre ter um homem ao lado, um marido. Parece que você só é mulher quando é acompanhada de um homem”, conta Sonia.

Ela conta também que é constantemente criticada por ter um filho gay. “Muitas dizem que meu filho virou gay porque não tinha uma referência de homem em casa. Eu tenho que explicar que ninguém vira gay, mas nasce assim. Então, esse preconceito é algo que pesa muito e tenho combatido dia-a-dia. Porque a gente pode ser o que a gente quer. A mulher pode ser o que quer, casar com quem quiser e viver como achar melhor”.

Segundo Sonia, foram muitas as ameaças e violências, tendo que recoler à Polícia Civil para registrar um boletim de ocorrência. “É necessário levar informação e estar sempre conversando com essas mulheres. A formação e a educação ainda é nossa ferramenta de mudança para que as mulheres ocupem cada vez mais esses espaços”, conclui. (Giovanna Campos)

Sonia Cleide, fundadora do Grupo de Mulheres Negras Malunga | Foto: Arquivo