Santuário de preservação de onças-pintadas sediado em Corumbá é referência nacional
30 agosto 2024 às 10h05
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Em uma época em que questões ambientais, como extinção de espécies e mudanças climáticas, ainda não estavam no centro das discussões, o Instituto Nex já dava seus primeiros passos na proteção de animais selvagens. Mas, para isso, enfrentou desafios significativos. Onças-pintadas, frequentemente vistas como ameaças, eram alvo de caçadores e moradores das regiões vizinhas. O Nex, porém, se dedicou a mudar essa percepção, promovendo a coexistência pacífica entre humanos e grandes predadores. Hoje, o Instituto é responsável por resgatar, reabilitar e preservar esses felinos, além de realizar programas educativos que destacam a importância da biodiversidade.
Exemplos não faltam. Em 2020, quando o Pantanal Mato-Grossense enfrentou um incêndio de grandes proporções, duas onças foram tratadas no Instituto. A primeira, chamada Amanaci, recebeu tratamento com células-tronco e se recuperou das queimaduras de terceiro grau, embora tenha perdido as garras e não possa ser devolvida à natureza. Em 2022, ela teve seu primeiro filhote em cativeiro.
A outra onça, batizada de Ousado, foi reintroduzida na região de Porto Jofre, em Poconé (MT), após tratamento para queimaduras graves, desidratação e problemas respiratórios devido à inalação de fumaça. Atualmente, Ousado está em seu habitat natural. Outro animal famoso do Nex é a Matí. A “estrela” da novela Pantanal (2022) nasceu no Instituto Onça Pintada (IOP) em 2021 e foi destinada à ONG com a finalidade de ser uma fêmea reprodutiva e continuar contribuindo para a conservação da espécie em cativeiro.
Como os problemas se repetem, neste mês de agosto, outra onça chegou ao Instituto para fazer tratamento devido aos mesmos problemas: as queimadas no Pantanal. Trata-se de uma onça-pintada de 2 anos, chamada Itapira, resgatada no município de Miranda (MS) e vítima de queimaduras de segundo grau. O animal, que estava em estado de desidratação e sentindo muita dor, foi levado ao Instituto Nex após resgate realizado por veterinários do Instituto Onçafari, organização dedicada à preservação da fauna e flora do Pantanal. Itapira agora recebe tratamento intensivo, com troca de curativos a cada dois dias. A expectativa é que ela esteja completamente recuperada em um mês, para poder retornar ao seu habitat natural.
A ideia da criação do Instituto Nex começou com uma visita de Silvano e Cristina Gianni, seus fundadores, ao Zoológico de Brasília. Lá, eles conheceram Pacato, uma onça-suçuarana que vivia em um espaço pequeno. Preocupados com a situação do animal, decidiram transformar a fazenda deles, em Corumbá de Goiás, em um local para proteção e abrigo de felinos silvestres. Hoje, a ONG tem em seu plantel, além de onças-pintadas, onças pardas e uma jaguatirica.
Nesta entrevista ao Jornal Opção Entorno, Silvano Gianni fala sobre os desafios para a manutenção e conservação dos grandes felinos. Além disso, ele destaca as parcerias e as pesquisas desenvolvidas no Nex, ressaltando, também, como o criadouro conservacionista trabalha para se manter em atividade.
Paulo Henrique Magdalena – Quais são os principais desafios enfrentados pelo Instituto Nex na conservação das onças-pintadas no Brasil?
Silvano Gianni – A redução do habitat das onças, por conta do desmatamento, é o principal problema. Você retira a mata para poder inserir uma cultura ou uma criação – de bovinos, por exemplo – e, com isso você tira a caça e a casa da onça. Então, ela vai se aproximar de um humano e vai morrer, não vai ter a morte pela retaliação. E o principal desafio da conservação tem sido isso, nos Estados Unidos aconteceu dessa forma. Eles estão com esse animal extinto na natureza. Na Argentina isso também ocorreu. Eles começaram um projeto, agora, de reintrodução, do qual o Nex participou, enviando animais para que eles pudessem reintroduzir a espécie. Já aconteceu no Pampa gaúcho. O objetivo do Nex é exatamente lutar contra essa situação de extinção, mas o custo para manter esses animais é alto. Temos 25 onças sem condições de retorno à natureza e que consomem uma tonelada e meia de carne por mês. Fazemos parcerias e lutamos todos os dias por doações de empresas que queiram patrocinar a causa.
Paulo Henrique Magdalena – Pode nos contar sobre algum projeto recente da fundação Nex que tenha mostrado resultados positivos na conservação das onças-pintadas?
Silvano Gianni – A soltura de animais. Acho que os principais exemplos estão fora do Brasil. Havia uma grande área degradada na Argentina, chamada Chaco, que foi utilizada para a plantação de arroz ao longo do século passado. O uso excessivo de agrotóxicos, naquela época, sem a noção de dosagem adequada, acabou destruindo todo um grande ecossistema. Essa região teve de ser reflorestada e repovoada com animais. No final desse projeto, ainda faltava reintroduzir as onças-pintadas no local. O Nex participou da reintrodução de onças nesse ambiente, levando duas fêmeas para lá. Hoje, essas onças já tiveram filhotes, e as onças da redondeza, que não se aproximavam do local há 70 anos, voltaram a frequentá-lo. Estou falando do Parque Nacional Esteros del Iberá, uma grande área de quase 750 mil hectares, que não tinha onças e hoje já conta com 16 delas circulando por lá.
Paulo Henrique Magdalena – Quais parcerias ou colaborações o Instituto Nex tem com outras organizações ou instituições, tanto nacionais quanto internacionais, para promover a conservação das onças-pintadas?
Silvano Gianni – Nós conseguimos alimentar nossos animais com doação de carne suína de uma empresa de Brasília, a Bonasa. Temos também parcerias com institutos internacionais, como, por exemplo, o Smithsonian Institution, que realiza pesquisas aqui com as onças que não puderam ser soltas na natureza. Elas são extremamente úteis, pois esses estudos não seriam possíveis com animais em vida livre. O Smithsonian tem hoje um projeto em andamento que envolve o uso de um monitor cardíaco implantado em dez onças do Instituto Nex. Esse monitor acompanha o comportamento e as reações dos animais em diferentes situações. Por exemplo, os pesquisadores podem criar uma situação diferenciada, como fornecer uma alimentação enriquecida ou esconder a comida, forçando a onça a procurá-la. Essas mudanças de ambiente afetam o comportamento e o batimento cardíaco dos bichos, gerando uma grande quantidade de dados, os quais são compilados e os resultados publicados. Como eles não têm onças lá, eles fazem as pesquisas com as onças aqui no Instituto e publicam. E nosso acordo é que haja publicação de todas as pesquisas.
Paulo Henrique Magdalena – O Instituto recebe doações ou patrocínios de empresas locais para auxiliar em suas operações? Se sim, quais empresas estão envolvidas?
Silvano Gianni – Muito pouco. Recebemos doações de carne da Bonasa, algo que tem sido constante. Empresas de construção, como a Lucca Empreendimento Imobiliário, que nem é de Brasília ou do Entorno, mas de São Paulo, e empresas de Santa Catarina, fazem doações periódicas. Porém, a maior parte das doações vem do público que segue as redes sociais do Nex e, muitas vezes, visita o Instituto para conhecer de perto o trabalho que fazemos.
Paulo Henrique Magdalena – Qual é o processo de agendamento para visitas guiadas?
Silvano Gianni – As visitas guiadas são autorizadas apenas para pequenos grupos e precisam ser pré-agendadas. Não somos um zoológico, então não estamos abertos ao público em geral. A regra é a seguinte: as pessoas precisam agendar a visita. Eu preciso informar à Secretaria de Meio Ambiente sobre a visita que vamos receber, incluindo o nome e a identificação dos visitantes. Os grupos são pequenos, com no máximo dois por semana, totalizando cerca de 30 pessoas. Esse público, para visitar o Nex, faz uma doação, que é crucial para que possamos continuar o nosso trabalho.
Paulo Henrique Magdalena – O senhor considera que o Nex, de alguma forma, contribui para o turismo na região do Entorno?
Silvano Gianni – Tenho certeza que sim. Estamos a 100 km de Brasília e a menos de 200 km de Goiânia, muito perto de Pirenópolis. Isso acaba criando um circuito de visitas. Pessoas de Goiânia que visitam Pirenópolis, costumam visitar o Nex com bastante frequência. Da mesma forma, pessoas de Brasília que frequentam Pirenópolis, também visitam o Nex. As cidades do Entorno vendem produtos para apoiar essas visitas e, muitas vezes, quando essas pessoas vêm ao Instituto, elas recebem café da manhã, almoço e lanche. Com isso, conseguimos gerar empregos e movimentar a economia da região, incluindo Águas Lindas, Cocalzinho, Alexânia e Corumbá de Goiás, que é nosso município-sede. Obviamente, isso é um passo a mais no turismo local. Aqui na redondeza, já temos o turismo de queijos especiais, vinhos da região, toda a história de Pirenópolis, e, claro, as onças do Nex. Esse conjunto de atividades turísticas promove a região e certamente gera empregos.
Paulo Henrique Magdalena – Quais são as formas disponíveis para que a comunidade local participe das atividades do Instituto?
Silvano Gianni – A comunidade local já contribui muito, ao parar de matar onças. Quando começamos o Instituto, há 24 anos, não se falava em mudança climática ou nos riscos ao meio ambiente devido à extinção das espécies. Naquela época, quando se falava em conservar uma espécie e evitar a extinção, as pessoas olhavam com espanto e diziam: “Mas justo a onça aqui do lado? Isso é um perigo. É um risco”. Vinte e quatro anos depois, as pessoas estão muito mais conscientes e ajudam a preservar. Quando há um animal de vida livre circulando por aqui, somos o primeiro organismo a ser informado, para que possamos trabalhar em conjunto com os órgãos reguladores, como a Secretaria de Meio Ambiente de Goiás, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Então, a comunidade nos ajuda aceitando e prestigiando o Nex, porque, obviamente, enxergam nele uma oportunidade, inclusive de geração de renda.
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