“O Cerrado está indo embora”, alerta a professora da UnB, Isabel Belloni Schmidt
13 setembro 2024 às 10h33
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Os incêndios florestais no Brasil têm se tornado cada vez mais comuns nos últimos anos. De acordo com a base de dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o país possui atualmente mais de cinco mil focos de incêndio ativos e concentra 76% das áreas afetadas pelo fogo em toda a América do Sul. O aumento de queimadas foi registrado no bioma Cerrado, que ultrapassou a Amazônia nas frentes de fogo e registrou 2.489 focos nesta semana.
Somente na região da Chapada dos Veadeiros e da Área de Proteção Ambiental Pouso Alto, em Goiás, o fogo já destruiu mais de 10 mil hectares. Também há áreas atingidas em Luziânia e Santo Antônio do Descoberto, no Entorno do Distrito Federal, cidades que foram incluídas no Decreto nº 10.539, publicado pelo governo estadual, o qual declara situação de emergência em 20 municípios afetados por “incêndios em áreas não protegidas, com reflexos na qualidade do ar”.
Para Isabel Belloni Schmidt, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da frente de Manejo Integrado do Fogo (MIF) na Rede Biota Cerrado, há uma ligação importante entre a frequência e a intensidade dos incêndios florestais, e as práticas variáveis de manejo florestal. A docente também foi uma das pioneiras no uso do MIF no Cerrado, em 2014, por meio do Programa Piloto de Manejo Integrado do Fogo.
Nesta entrevista ao Jornal Opção Entorno, Isabel Schmidt fala sobre as principais causas e os impactos ambientais e climáticos provocados pelas chamas, além das consequências para a saúde da população e medidas de minimização dos incêndios florestais.
Hellen Lopes – Qual é a ligação entre as mudanças climáticas e os incêndios florestais?
Isabel Schmidt – As mudanças climáticas estão tornando eventos de secas prolongadas e ondas de calor mais frequentes e extremos. Ou seja, aumentam a probabilidade de propagação (espalhamento) dos incêndios. Mas é muito importante reconhecer que o início de qualquer incêndio no período de seca é humano. Todos aprendemos na escola que, para haver fogo, precisamos de oxigênio, combustível e ignição. As únicas fontes de ignição naturais são os vulcões e os raios. Como não temos vulcões ativos no Brasil, nossas queimas naturais só se iniciam nas épocas das chuvas, quando os raios também ocorrem.
Hellen Lopes – Então, esses incêndios também podem ser considerados criminosos?
Isabel Schmidt – Na maior parte do Brasil, neste período do ano, é proibido fazer fogo. Visto que não há fontes naturais de ignição (raios) nesta época, todo fogo neste momento é ilegal. Muitos dos incêndios se iniciam por descuido ou irresponsabilidade de alguém que abandonou uma fogueira sem cuidado, ou que quis “limpar” o terreno com fogo, e dali o fogo se espalha. Mas há sim, incêndios iniciados propositalmente, buscando prejudicar vizinhos ou instituições, para se vingar de alguma desavença. Ou, em alguns casos, a intenção é de gerar o caos, mesmo.
Hellen Lopes – A Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride) enfrenta muitos focos de incêndio. No Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o fogo já destruiu mais de 10 mil hectares. Quais características deste bioma contribuem para o surgimento de queimadas?
Isabel Schmidt – O Cerrado é uma savana e, por isso, convive naturalmente com o fogo natural há 4 milhões de anos. O fogo natural é iniciado por raios, que só se iniciam na estação chuvosa. E só se propaga por ambientes por onde há capins, ou seja, nos nossos campos e savanas. Dentro do Cerrado, há muitas florestas, ambientes muito sensíveis e que não evoluíram com o fogo e, portanto, são muito impactados por eles. O surgimento natural do fogo no Cerrado só ocorre por raios. Todos os incêndios que estamos vendo são causados por pessoas, por intenção ou por descuido e irresponsabilidade.
Hellen Lopes – O governador Caiado declarou situação de emergência em 20 municípios afetados por incêndios em áreas não protegidas. Entre eles, Luziânia e Santo Antônio do Descoberto. Como a senhora avalia este decreto?
Isabel Schmidt – Certamente, a ocorrência de incêndios piora a vida de todos nós. E ações governamentais são importantes para reduzir esses impactos. Mas é importante que elas não se restrinjam a momentos de emergência. O investimento na área ambiental é essencial para melhorar a qualidade de vida das pessoas, sempre. Não apenas em emergências.
Hellen Lopes – A senhora tem atuado em pesquisas para conservação do Cerrado. O que há de mais novo neste campo?
Isabel Schmidt – O Manejo Integrado do Fogo (MIF) é algo muito novo no Brasil, iniciado há 10 anos. Aqui no DF, apenas o Parque Nacional de Brasília e a Floresta Nacional de Brasília fazem ações concretas de manejo do fogo e tiveram redução na ocorrência de incêndios. Muito ainda precisa ser feito e compreendido. Além disso, o MIF precisa ser expandido para mais áreas, inclusive nas terras privadas e estaduais.
Hellen Lopes – Quais ferramentas podem ser usadas para enriquecer e avançar o conhecimento sobre incêndios florestais?
Isabel Schmidt – A melhor maneira de reduzir a ocorrência de incêndios no Cerrado é fazer o MIF, ou seja, planejar a paisagem considerando que há risco de incêndios. Há várias atividades de prevenção de incêndios no Cerrado, inclusive o uso de queimas prescritas, ou seja, queimas controladas, em áreas específicas. Neste contexto, se escolhe onde, quando e por que faremos fogo. O MIF tem sido muito eficiente em reduzir os incêndios onde tem sido implementado. Por enquanto, apenas unidades de conservação federais, terras indígenas e territórios quilombolas implementaram o MIF. A Lei no 14.944/2024 sancionou a Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo, que poderá ajudar a expandir essa iniciativa para todo o Cerrado, inclusive nas terras privadas e estaduais.
Hellen Lopes – Quais prejuízos os incêndios florestais causam ao ecossistema do Cerrado?
Isabel Schmidt – Mesmo tendo evoluído com a ocorrência de fogo natural, os ecossistemas do Cerrado são muito impactados por incêndios frequentes, no final da seca. Alguns dos principais impactos são: mortalidade de árvores, especialmente nas matas de galeria, e matas ciliares, próximas aos rios; invasão por espécies exóticas – especialmente capins africanos, capim-braquiária, andropogon, capim-gordura e outros – que aumentam ainda mais o risco e os impactos dos incêndios; mortalidade de animais diretamente nos incêndios ou de forma indireta por fome e sede pós-incêndio ou atropelamento; e erosão e perda de solo, redução da vazão de águas dos rios e córregos.
Hellen Lopes – Como os incêndios e queimadas impactam na nossa saúde?
Isabel Schmidt – Diretamente, ao piorar a qualidade do ar e nossa condição respiratória. E de forma mais indireta, piorando a qualidade da água que bebemos e as condições ambientais das nossas regiões.
Hellen Lopes – Deseja destacar algo mais em relação ao Cerrado e ao Entorno?
Isabel Schmidt – Estamos no coração do Brasil, no coração das águas. O Cerrado está indo embora, sendo desmatado porque não damos a ele seu devido valor. É preciso defender o Cerrado conservado e de pé, para vivermos com qualidade. Nós precisamos do Cerrado e ele precisa de nós.
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