Paulo Lima: “As pessoas precisam compreender o valor do Cerrado”
20 setembro 2024 às 12h51
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O Instituto Cafuringa (ICAF) é uma organização da sociedade civil (OSC) que surgiu a partir da Brigada Voluntária Guardiões da Cafuringa, formada em 2019. Em 2023, o grupo se oficializou como Instituto. A missão do ICAF é apoiar a criação e manutenção de brigadas voluntárias focadas no Manejo Integrado do Fogo (MIF). Suas atividades incluem educação ambiental e prevenção de incêndios florestais na região noroeste do Distrito Federal. Atualmente, o Instituto presta suporte a cinco brigadas voluntárias, que atuam em áreas naturais estratégicas, contribuindo para a preservação de importantes Unidades de Conservação.
A iniciativa de criação do Instituto surgiu de Caroline Camilo, esposa de Paulo Lima, conhecido como “Paulinho” e também fundador do ICAF. Em 2019, ele sofreu um grave acidente na Área de Proteção Ambiental (APA) da Cafuringa, localizada no Cerrado e considerada a “última fronteira verde do Distrito Federal”. Na época, Paulinho teve grande parte do corpo queimado. Foram necessárias 40 cirurgias durante o processo de recuperação. Hoje, ele é um dos principais ativistas do Distrito Federal e Entorno na manutenção do Cerrado e no combate aos incêndios florestais.
Nesta entrevista ao Jornal Opção Entorno, Paulo Lima conta como foi a criação do ICAF, dá detalhes sobre o trabalho do Instituto e relata como está sendo debelado o incêndio que ainda atinge a região da Cafuringa. Além disso, ele revela a tragédia pessoal pelo qual passou e como essa experiência serviu como incentivo em sua luta pela preservação do meio ambiente.
Paulo Henrique Magdalena – A região da Cafuringa foi atingida por um incêndio. A situação já está sob controle? E como o ICAF tem trabalhado em parceria com órgãos de proteção ambiental para debelar o problema?
Paulo Lima – Sim, a Cafuringa ainda está pegando fogo em alguns pontos. Há uma semana, a rua lateral do Lago Oeste estava em chamas, abrangendo a área que tem mais residências e chácaras. Havia focos de incêndio nas moitas, que ficam atrás da Fercal e da Boa Vista, e era um fogo gigantesco, que desceu o morro e sumiu do nosso campo de visão. O incêndio ainda está ativo, mas não há um combate efetivo, porque é uma área muito perigosa e de difícil acesso. Respondendo à primeira parte da pergunta, conseguimos debelar o fogo na parte dos fundos da Cafuringa, com o apoio dos bombeiros e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). O problema é que, junto com esse incêndio, o Parque Nacional também estava pegando fogo no fim de semana. Todas as guarnições dos bombeiros, do Ibama e do ICMBio foram desviadas para lá. Foi um incêndio que queimou diversas áreas na última semana, incluindo o Parque Burle Marx e o Parque Nacional, além da Cafuringa. Nessa mesma semana, começou um incêndio na Rebio, uma reserva ecológica que fica ao lado do parque. Esse fogo foi controlado pelos bombeiros com a nossa atuação durante dois dias. Houve ainda incêndios em outros pontos, como numa cachoeira famosa aqui, chamada “Quebra dos Deuses”, e na Rua 12. A situação está controlada nas áreas com moradias, exceto nas montanhas e morros, onde o incêndio continua, mas com menor intensidade.
Paulo Henrique Magdalena – O senhor passou por um acidente que queimou boa parte do seu corpo. Pode nos dar o depoimento de como tudo ocorreu?
Paulo Lima – Sim, com certeza. Foi em 7 de setembro de 2019. Estava ocorrendo um incêndio na mesma região do Lago Oeste, onde começou o fogo que citei agora. Era um incêndio que já estava ativo há duas semanas, com várias pessoas combatendo, e avançava pelas montanhas em direção às ruas do Lago Oeste. Minha esposa e eu fomos lá ver a situação e percebemos que uma residência, onde morava um casal de idosos, estava na rota do fogo. O senhor da casa havia feito uma cirurgia recentemente, estava acamado, e oferecemos nossa ajuda. No dia seguinte, eles nos chamaram, e fomos lá tentar apagar o fogo ao redor do local. Era uma situação de altíssimo risco, pois o fogo era em uma pirambeira, um tipo de incêndio extremamente perigoso, onde o mais seguro é esperar o fogo subir e combatê-lo de cima. Naquela época, não tínhamos a experiência que temos hoje. Eu e dois amigos descemos o morro, mesmo com o alerta da minha esposa, Carol, que tem mais experiência e nos avisou dos riscos. Enquanto voltávamos, o vento mudou de direção repentinamente, algo comum nesta época do ano, e o fogo nos surpreendeu. Eu estava na metade do morro, quando fui cercado pelas chamas. O fogo passou por cima de mim e comecei a queimar; minha roupa se despedaçou, meu cabelo evaporou, e gritei muito, achando que iria morrer ali. Rapidamente, percebi que a única saída era pular para uma área já queimada. Consegui escapar, mas estava gravemente ferido, com o pé esquerdo fraturado e queimaduras em boa parte do corpo. Comecei a escalar para tentar me salvar, mas o calor das pedras queimava as minhas mãos. Subi o morro e encontrei meu amigo Gabriel, que me ajudou a sair dali. Andamos pela mata, pulamos cercas e atravessamos erosões até conseguirmos ajuda. Cheguei ao HRAN (Hospital Regional da Asa Norte), onde fiquei internado por 60 dias, fiz cerca de 40 procedimentos cirúrgicos e tive que substituir quase toda a pele queimada, que abrangia 47% do meu corpo. Perdi as orelhas, parte das narinas, as pálpebras, mas, felizmente, me recuperei muito bem. Hoje, vivo com mobilidade quase total e com uma nova perspectiva de vida.
Paulo Henrique Magdalena – O que motivou a criação da Brigada Voluntária Guardiões da Cafuringa em 2019 e como foi o processo de oficialização do Instituto Cafuringa em 2023?
Paulo Lima – A semente da criação foi minha esposa, que me acompanhou no hospital durante todo o tempo em que fiquei internado. Quando saímos do hospital, voltamos para a casa onde sempre moramos, que está na rota do fogo. Quem vive em zonas rurais, em costas de montanha, precisa estar disposto a viver em harmonia com a natureza local. E aqui, pela geografia e pela má cultura das pessoas ainda colocarem fogo para queimar poda de planta, trocar vegetação de pasto, ou para grilagem, o fogo está sempre presente. Não é o fogo positivo, é um fogo negativo. E aí, minha esposa, tocada por isso, disse: “Vamos nos adaptar à nossa região. Não quero que ninguém mais sofra como você e eu sofremos, e a melhor maneira é aprender a lidar com o fogo”.
Ela entrou em contato com o ICMBio e com a comunidade local, organizou-se com pessoas interessadas em combater incêndios. Conseguimos um curso pelo ICMBio, e já tínhamos a teoria e a prática. Só que não tínhamos condições. Então, organizamos um festival para arrecadar fundos para comprar equipamentos e EPIs para os combatentes. Assim nasceu o Festival do Fogo, que realizamos anualmente, com educação ambiental, gastronomia e música. Conseguimos arrecadar o dinheiro, equipamos a nossa brigada e, com isso, nasceu a Brigada Guardiões da Cafuringa. Ganhamos algumas doações do ICMBio e a brigada começou a operar.
Depois disso, fomos ao primeiro encontro nacional de brigadas florestais voluntárias, conhecemos outras brigadas com as mesmas dificuldades e vimos a necessidade de nos equiparmos melhor. Foi aí que minha esposa teve outra ideia: criar um instituto para conseguir projetos, receber recursos e ajudar outras brigadas a se fortalecerem. Passamos por todo o processo burocrático, com a ajuda de advogados, incluindo o advogado da Brigada de Alter do Chão, que nos orientou muito. E assim, com a formação do corpo fundador, nasceu o Instituto Cafuringa. Hoje, apoiamos quatro brigadas: a Brigada Guardiões da Cafuringa, a Brigada do Córrego do Ouro, a Brigada Feminina (a primeira brigada feminina não indígena) e a Brigada de Sobradinho 2, liderada pela Passarinha.
Paulo Henrique Magdalena – A Brigada Voluntária Feminina é uma iniciativa pioneira do Instituto. Quais são as suas particularidades e a importância de ter uma equipe composta exclusivamente por mulheres?
Paulo Lima – A Brigada Feminina é, acima de tudo, um movimento social, porque o cenário das brigadas de incêndio florestal era dominado por homens. Havia poucas mulheres, mas o interesse delas sempre existiu. Elas queriam atuar não apenas na linha de frente do combate ao fogo, mas em todas as áreas de criação e manutenção das brigadas. Aos poucos, vimos o potencial das mulheres e começamos a abrir espaço para que participassem mais. Elas têm uma maneira única de lidar com as situações: são mais compreensivas, equilibram o ambiente de trabalho e, ao fazerem isso, influenciam positivamente os homens.
Paulo Henrique Magdalena – Como o Instituto mobiliza e capacita novos voluntários para integrarem as brigadas e se engajarem na proteção ambiental?
Paulo Lima – Fazemos um trabalho inicial pelo Instagram, onde as pessoas interessadas entram em contato conosco. Aos poucos, fomos nos organizando melhor: criamos formulários para cadastro e organizamos cursos e treinamentos com o apoio de parceiros, como o Brasil Ambiental e o ICMBio. Recentemente, formamos 40 brigadistas no nosso primeiro curso oferecido pelo Instituto. Esse processo traz visibilidade, que é essencial para conseguir mais apoio e recursos. Temos uma boa relação com o Ibama e outros órgãos, que ajudam da forma que podem.
Paulo Henrique Magdalena – O que a última fronteira verde do Distrito Federal representa em termos de conservação ambiental e como o Instituto atua para preservá-la?
Paulo Lima – A última fronteira verde do DF, a APA da Cafuringa, é uma área de alta biodiversidade e a principal “caixa d’água” da região. A água que nasce aqui desce para vários estados, incluindo o Pantanal. A área está sob ameaça do avanço do agronegócio, que vem desmatando para plantação de soja e criação de gado. É essencial que as pessoas compreendam o valor da conservação dessa área, pois ela sustenta nossa água, alimentos e ar. O Instituto atua como uma resistência, conscientizando e protegendo essa região.
Paulo Henrique Magdalena – Como o senhor enxerga o atual cenário do Cerrado na nossa região?
Paulo Lima – O cenário do Cerrado é crítico e de extrema preocupação. Com as mudanças climáticas, as plantas estão mais secas, os períodos de seca são mais severos, e os incêndios estão mais frequentes e intensos. O fogo natural do Cerrado era brando e benéfico, mas hoje, com a introdução de vegetações invasoras, o fogo é destrutivo. É preciso educar as pessoas sobre o valor do Cerrado, para que possamos preservar o que é insubstituível.
Paulo Henrique Magdalena – Como seria possível reverter a degradação visível do Cerrado por conta dos incêndios descontrolados?
Paulo Lima – A única maneira é por meio da educação. As pessoas precisam compreender que o valor do Cerrado é maior que o do dinheiro e que, sem ele, nossa sobrevivência está em risco. É necessário aprender a conviver com o espaço natural, ao invés de transformá-lo para se adequar ao conforto humano. Junto com a educação, é fundamental fazer cumprir as leis e punir quem coloca fogo de forma irresponsável. Com educação e punição, podemos caminhar para um futuro em que o Cerrado seja valorizado e preservado.
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