O Instituto Cafuringa (ICAF) é uma organização da sociedade civil (OSC) que surgiu a partir da Brigada Voluntária Guardiões da Cafuringa, formada em 2019. Em 2023, o grupo se oficializou como Instituto. A missão do ICAF é apoiar a criação e manutenção de brigadas voluntárias focadas no Manejo Integrado do Fogo (MIF). Suas atividades incluem educação ambiental e prevenção de incêndios florestais na região noroeste do Distrito Federal. Atualmente, o Instituto presta suporte a cinco brigadas voluntárias, que atuam em áreas naturais estratégicas, contribuindo para a preservação de importantes Unidades de Conservação.

A iniciativa de criação do Instituto surgiu de Caroline Camilo, esposa de Paulo Lima, conhecido como “Paulinho” e também fundador do ICAF. Em 2019, ele sofreu um grave acidente na Área de Proteção Ambiental (APA) da Cafuringa, localizada no Cerrado e considerada a “última fronteira verde do Distrito Federal”. Na época, Paulinho teve grande parte do corpo queimado. Foram necessárias 40 cirurgias durante o processo de recuperação. Hoje, ele é um dos principais ativistas do Distrito Federal e Entorno na manutenção do Cerrado e no combate aos incêndios florestais.

Nesta entrevista ao Jornal Opção Entorno, Paulo Lima conta como foi a criação do ICAF, dá detalhes sobre o trabalho do Instituto e relata como está sendo debelado o incêndio que ainda atinge a região da Cafuringa. Além disso, ele revela a tragédia pessoal pelo qual passou e como essa experiência serviu como incentivo em sua luta pela preservação do meio ambiente.

Brigadistas da Brigada Voluntária Guardiões da Cafuringa (Foto: Reprodução/ Instagram)

Paulo Henrique Magdalena – A região da Cafuringa foi atingida por um incêndio. A situação já está sob controle? E como o ICAF tem trabalhado em parceria com órgãos de proteção ambiental para debelar o problema?

Paulo Lima – Sim, a Cafuringa ainda está pegando fogo em alguns pontos. Há uma semana, a rua lateral do Lago Oeste estava em chamas, abrangendo a área que tem mais residências e chácaras. Havia focos de incêndio nas moitas, que ficam atrás da Fercal e da Boa Vista, e era um fogo gigantesco, que desceu o morro e sumiu do nosso campo de visão. O incêndio ainda está ativo, mas não há um combate efetivo, porque é uma área muito perigosa e de difícil acesso. Respondendo à primeira parte da pergunta, conseguimos debelar o fogo na parte dos fundos da Cafuringa, com o apoio dos bombeiros e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). O problema é que, junto com esse incêndio, o Parque Nacional também estava pegando fogo no fim de semana. Todas as guarnições dos bombeiros, do Ibama e do ICMBio foram desviadas para lá. Foi um incêndio que queimou diversas áreas na última semana, incluindo o Parque Burle Marx e o Parque Nacional, além da Cafuringa. Nessa mesma semana, começou um incêndio na Rebio, uma reserva ecológica que fica ao lado do parque. Esse fogo foi controlado pelos bombeiros com a nossa atuação durante dois dias. Houve ainda incêndios em outros pontos, como numa cachoeira famosa aqui, chamada “Quebra dos Deuses”, e na Rua 12. A situação está controlada nas áreas com moradias, exceto nas montanhas e morros, onde o incêndio continua, mas com menor intensidade.

Paulo Henrique Magdalena – O senhor passou por um acidente que queimou boa parte do seu corpo. Pode nos dar o depoimento de como tudo ocorreu?

Paulo Lima – Sim, com certeza. Foi em 7 de setembro de 2019. Estava ocorrendo um incêndio na mesma região do Lago Oeste, onde começou o fogo que citei agora. Era um incêndio que já estava ativo há duas semanas, com várias pessoas combatendo, e avançava pelas montanhas em direção às ruas do Lago Oeste. Minha esposa e eu fomos lá ver a situação e percebemos que uma residência, onde morava um casal de idosos, estava na rota do fogo. O senhor da casa havia feito uma cirurgia recentemente, estava acamado, e oferecemos nossa ajuda. No dia seguinte, eles nos chamaram, e fomos lá tentar apagar o fogo ao redor do local. Era uma situação de altíssimo risco, pois o fogo era em uma pirambeira, um tipo de incêndio extremamente perigoso, onde o mais seguro é esperar o fogo subir e combatê-lo de cima. Naquela época, não tínhamos a experiência que temos hoje. Eu e dois amigos descemos o morro, mesmo com o alerta da minha esposa, Carol, que tem mais experiência e nos avisou dos riscos. Enquanto voltávamos, o vento mudou de direção repentinamente, algo comum nesta época do ano, e o fogo nos surpreendeu. Eu estava na metade do morro, quando fui cercado pelas chamas. O fogo passou por cima de mim e comecei a queimar; minha roupa se despedaçou, meu cabelo evaporou, e gritei muito, achando que iria morrer ali. Rapidamente, percebi que a única saída era pular para uma área já queimada. Consegui escapar, mas estava gravemente ferido, com o pé esquerdo fraturado e queimaduras em boa parte do corpo. Comecei a escalar para tentar me salvar, mas o calor das pedras queimava as minhas mãos. Subi o morro e encontrei meu amigo Gabriel, que me ajudou a sair dali. Andamos pela mata, pulamos cercas e atravessamos erosões até conseguirmos ajuda. Cheguei ao HRAN (Hospital Regional da Asa Norte), onde fiquei internado por 60 dias, fiz cerca de 40 procedimentos cirúrgicos e tive que substituir quase toda a pele queimada, que abrangia 47% do meu corpo. Perdi as orelhas, parte das narinas, as pálpebras, mas, felizmente, me recuperei muito bem. Hoje, vivo com mobilidade quase total e com uma nova perspectiva de vida.

Brigada voluntária em ação (Foto: Reprodução/ Instagram)

Paulo Henrique Magdalena – O que motivou a criação da Brigada Voluntária Guardiões da Cafuringa em 2019 e como foi o processo de oficialização do Instituto Cafuringa em 2023?

Paulo Lima – A semente da criação foi minha esposa, que me acompanhou no hospital durante todo o tempo em que fiquei internado. Quando saímos do hospital, voltamos para a casa onde sempre moramos, que está na rota do fogo. Quem vive em zonas rurais, em costas de montanha, precisa estar disposto a viver em harmonia com a natureza local. E aqui, pela geografia e pela má cultura das pessoas ainda colocarem fogo para queimar poda de planta, trocar vegetação de pasto, ou para grilagem, o fogo está sempre presente. Não é o fogo positivo, é um fogo negativo. E aí, minha esposa, tocada por isso, disse: “Vamos nos adaptar à nossa região. Não quero que ninguém mais sofra como você e eu sofremos, e a melhor maneira é aprender a lidar com o fogo”.

Ela entrou em contato com o ICMBio e com a comunidade local, organizou-se com pessoas interessadas em combater incêndios. Conseguimos um curso pelo ICMBio, e já tínhamos a teoria e a prática. Só que não tínhamos condições. Então, organizamos um festival para arrecadar fundos para comprar equipamentos e EPIs para os combatentes. Assim nasceu o Festival do Fogo, que realizamos anualmente, com educação ambiental, gastronomia e música. Conseguimos arrecadar o dinheiro, equipamos a nossa brigada e, com isso, nasceu a Brigada Guardiões da Cafuringa. Ganhamos algumas doações do ICMBio e a brigada começou a operar.

Depois disso, fomos ao primeiro encontro nacional de brigadas florestais voluntárias, conhecemos outras brigadas com as mesmas dificuldades e vimos a necessidade de nos equiparmos melhor. Foi aí que minha esposa teve outra ideia: criar um instituto para conseguir projetos, receber recursos e ajudar outras brigadas a se fortalecerem. Passamos por todo o processo burocrático, com a ajuda de advogados, incluindo o advogado da Brigada de Alter do Chão, que nos orientou muito. E assim, com a formação do corpo fundador, nasceu o Instituto Cafuringa. Hoje, apoiamos quatro brigadas: a Brigada Guardiões da Cafuringa, a Brigada do Córrego do Ouro, a Brigada Feminina (a primeira brigada feminina não indígena) e a Brigada de Sobradinho 2, liderada pela Passarinha.

Paulo Henrique Magdalena – A Brigada Voluntária Feminina é uma iniciativa pioneira do Instituto. Quais são as suas particularidades e a importância de ter uma equipe composta exclusivamente por mulheres?

Paulo Lima – A Brigada Feminina é, acima de tudo, um movimento social, porque o cenário das brigadas de incêndio florestal era dominado por homens. Havia poucas mulheres, mas o interesse delas sempre existiu. Elas queriam atuar não apenas na linha de frente do combate ao fogo, mas em todas as áreas de criação e manutenção das brigadas. Aos poucos, vimos o potencial das mulheres e começamos a abrir espaço para que participassem mais. Elas têm uma maneira única de lidar com as situações: são mais compreensivas, equilibram o ambiente de trabalho e, ao fazerem isso, influenciam positivamente os homens.

Em 2019, Paulo Lima ficou internado no HRAN durante 60 dias em decorrência de queimaduras em boa parte do corpo (Foto: Reprodução/ Instagram)

Paulo Henrique Magdalena – Como o Instituto mobiliza e capacita novos voluntários para integrarem as brigadas e se engajarem na proteção ambiental?

Paulo Lima – Fazemos um trabalho inicial pelo Instagram, onde as pessoas interessadas entram em contato conosco. Aos poucos, fomos nos organizando melhor: criamos formulários para cadastro e organizamos cursos e treinamentos com o apoio de parceiros, como o Brasil Ambiental e o ICMBio. Recentemente, formamos 40 brigadistas no nosso primeiro curso oferecido pelo Instituto. Esse processo traz visibilidade, que é essencial para conseguir mais apoio e recursos. Temos uma boa relação com o Ibama e outros órgãos, que ajudam da forma que podem.

Paulo Henrique Magdalena – O que a última fronteira verde do Distrito Federal representa em termos de conservação ambiental e como o Instituto atua para preservá-la?

Paulo Lima – A última fronteira verde do DF, a APA da Cafuringa, é uma área de alta biodiversidade e a principal “caixa d’água” da região. A água que nasce aqui desce para vários estados, incluindo o Pantanal. A área está sob ameaça do avanço do agronegócio, que vem desmatando para plantação de soja e criação de gado. É essencial que as pessoas compreendam o valor da conservação dessa área, pois ela sustenta nossa água, alimentos e ar. O Instituto atua como uma resistência, conscientizando e protegendo essa região.

Paulo Henrique Magdalena – Como o senhor enxerga o atual cenário do Cerrado na nossa região?

Paulo Lima – O cenário do Cerrado é crítico e de extrema preocupação. Com as mudanças climáticas, as plantas estão mais secas, os períodos de seca são mais severos, e os incêndios estão mais frequentes e intensos. O fogo natural do Cerrado era brando e benéfico, mas hoje, com a introdução de vegetações invasoras, o fogo é destrutivo. É preciso educar as pessoas sobre o valor do Cerrado, para que possamos preservar o que é insubstituível.

Paulo Lima: “O Instituto atua como uma resistência, conscientizando e protegendo essa região” (Foto: Reprodução/ Instagram)

Paulo Henrique Magdalena – Como seria possível reverter a degradação visível do Cerrado por conta dos incêndios descontrolados?

Paulo Lima – A única maneira é por meio da educação. As pessoas precisam compreender que o valor do Cerrado é maior que o do dinheiro e que, sem ele, nossa sobrevivência está em risco. É necessário aprender a conviver com o espaço natural, ao invés de transformá-lo para se adequar ao conforto humano. Junto com a educação, é fundamental fazer cumprir as leis e punir quem coloca fogo de forma irresponsável. Com educação e punição, podemos caminhar para um futuro em que o Cerrado seja valorizado e preservado.

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